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Acordo entre parteiras indígenas e ONG garante continuidade da oferta de parto humanizado em Maués

Na cuia com çapó, a defensores públicos atuaram para a conciliação do conflito sobre patrimônio da Organização Não-Governamental Mama Ekos onde parteiras sateré-mawé e ribeirinhas ofereciam serviço

O Polo de Maués da Defensoria Pública do Estado do Amazonas (DPE-AM) intermediou um acordo entre integrantes da Organização Não-Governamental (ONG) sem fins lucrativos Mama Ekos sobre a posse do terreno onde funcionava a entidade. A ONG atua desde 2017 no município, oferecendo serviço de parto humanizado, realizado por parteiras ribeirinhas e indígenas sateré-mawé.

A disputa se deu entre a gestora da ONG, que decidiu encerrar a parceria, vender o terreno da sede e deixar a cidade; e as indígenas, determinadas a continuar o projeto. Pelo acordo, o terreno poderá ser vendido e o valor será dividido entre as partes. Dessa forma, as mulheres poderão seguir com o trabalho na região, agora como protagonistas na ONG, que já chegou a contar com 60 parteiras. 

A intermediação foi feita respeitando a cultura indígena, com diálogo ocorrendo em uma roda de çapó, bebida à base de guaraná consumida pelos sateré-mawé. O acordo foi assinado no dia 8 de fevereiro deste ano. Agora a ONG passou a ser presidida por Amazonildes Almeida de Almeida, que é sateré-mawé, o que para a comunidade tem uma conotação muito forte. 

“Gostei muito de a Defensoria lembrar de nós e nos ouvir. A gente precisa muito das pessoas que nos ouçam, nos deem orientação e nos ajudem. É isso que a gente precisa como mulher. A gente conversou e foi tudo bem. A gente vai continuar e a gente espera que dê tudo certo com nossas manas, com nossos chefes indígenas, que disseram que vão nos apoiar. Sou muito grata”, afirmou.

A Mama Ekos tem o objetivo de empoderar e organizar o trabalho das parteiras ribeirinhas e indígenas, oferecendo serviços de parto humanizado, movimento que ganhou força na região. As mulheres que compõem a ONG se reúnem para compartilhar seus saberes, como o uso de ervas medicinais da Amazônia no acompanhamento das gestantes e no trabalho de parto. Elas atendem gestantes em Maués e também na Terra Indígena Andirá Marau, território tradicional dos sateré-mawé, com o apoio da Fundação Nacional do Índio (Funai). 

“O trabalho das parteiras é tradicional na nossa região. É uma alegria muito forte que a gente tem e é muito importante, porque tem mulheres que vivem em locais afastados, onde não tem hospitais. Muitas famílias procuram a gente. Faço tudo, erva medicinal, ‘benzo’, ‘puxo’, faço parto”, conta Amazonildes, que é filha de parteira. 

A presidente da Mama Ekos afirma que a ONG é muito importante para as mulheres da região. “A gente se acolhe, se dá muito bem, se abraça, a gente cria esperança, a gente quer melhorar o nosso trabalho de vida. Porque não é fácil, não. A esperança, a fé nossa, é que a gente vai continuar, porque foi uma coisa muito boa para nós, despertou a nossa mente. Tornaram a nascer aquelas coisas que foram do passado, o nosso trabalho de parteira”, acrescenta Amazonildes. 

Divisão

O conflito entre as integrantes da ONG se deu porque o terreno da sede da entidade estava em nome da fundadora e então tesoureira, Patrícia Delpino Martins, que estava interessada em se retirar da parceria. As parteiras, no entanto, tinham interesse em seguir com o trabalho e reivindicavam direitos sobre o terreno para custear a manutenção da entidade.

Tanto a fundadora da ONG, em nome de quem estava registrado o terreno, quanto as parteiras, procuraram atendimento da DPE-AM, que atuou por se tratar de uma questão de divisão patrimonial. “A demanda acabou se tornando mais cível, em relação à propriedade da terra”, explicou o defensor Daniel Bettanin, que atua no Polo de Maués. 

Ao intermediar a conciliação, a Defensoria atuou com dois defensores públicos, um para cada parte, e chegou ao acordo para vender o terreno, com a metade do valor da venda sendo revertido às parteiras, para que elas continuem seu trabalho com a ONG.  

Para Patrícia, a intermediação da Defensoria facilitou o acordo, auxiliando no diálogo para que se chegasse a uma solução de forma pacífica e rápida. “O papel da Defensoria foi bem importante para que pudesse mostrar para ambas as partes a situação de uma forma bem imparcial e bem clara, para que ambas entendessem a situação e como nós poderíamos chegar a um acordo”, avaliou. 

O diálogo para a definição do acordo contou ainda com a atuação do subdefensor geral, Thiago Nobre Rosas, que foi a Maués para ouvir os indígenas e participou de reuniões conciliatórias e da Assembleia Geral Extraordinária da ONG, em que foi realizada a tradição do diálogo com todos compartilhando o çapó, bebida a base de guaraná ralado em uma pedra ou na língua pirarucu, que é consumida pelos sateré-mawé. O çapó é sempre preparado pela mulher do anfitrião. Na assembleia, as parteiras passaram a presidir e conduzir a entidade e foi feito o acordo sobre a questão patrimonial da ONG.

Tradição

“A nossa presença foi importante para garantir a comunicação clara e o diálogo para facilitar a chegada a um acordo entre as partes, que eram todas mulheres, a maioria indígena. E nós pudemos intermediar a pacificação do conflito de forma extrajudicial. Na assembleia, as indígenas fizeram o çapó e nós compartilhamos. Segundo a tradição dos sataré-mawé, o çapó serve espantar os maus espíritos. Respeitamos a cultura deles nessa mediação. Foi muito positivo a gente estar nessa assembleia”, afirmou Thiago.

O defensor Daniel Battanin acrescentou que a resolução de conflitos de forma extrajudicial, ou seja, sem a necessidade de uma ação na Justiça, é uma das obrigações da Defensoria Pública. As defensoras e defensores públicos orientam as partes em conflito, procurando a conciliação dos interesses, evitando, assim, que seja necessário se recorrer à Justiça. “Além de representar uma solução mais rápida, a conciliação evita que o caso vá ao Judiciário. A conciliação é um método amigável e rápido de solução de conflitos”, disse.

“A gente entendeu que esse acordo é muito interessante para as parteiras. Muitas das parteiras já são senhoras de idade e esse tipo de demanda é muito demorado, então se entendeu que o acordo resguardaria melhor os interesses delas”, concluiu Bettanin. 

Para o defensor, na lógica da conciliação os dois saem ganhando, diferentemente da lógica do processo judicial, em que um ganha e o outro perde. “A principal da atuação da Defensoria Pública foi resguardar os direitos da comunidade indígena e ribeirinha, que hoje tem a oportunidade de continuar desempenhando o trabalho de parteiras com muito mais autonomia e independência”, avaliou.

Fotos: Divulgação DPE-AM

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