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Manauara precisa desenterrar o passado indígena para aprender a valorizá-lo e impedir a sua destruição

Durante a escravidão indígena na Amazônia, os portugueses usaram a região do rio Negro como um celeiro, onde vinham se abastecer de índios para substituir aqueles que morriam no trabalho

Ana Celia Ossame

Um povo sem memória e sem identidade é um povo incapacitado até para nutrir sonhos do presente para com o passado ou para com o futuro que pretende construir. A afirmativa, do jornalista e professor doutor José Ribamar Bessa Freire, amazonense, radicado no Rio Janeiro, refere-se à necessidade de se desenterrar a memória indígena da cidade de Manaus.

E, no aniversário de 351 anos de ocupação da cidade, ele, que é autor de livros e inúmeros artigos sobre a cidade e o passado indígena, afirma que “a necessidade de tomada de consciência das experiências coletivas são pré-condições para que a população de Manaus se organize e impeça que a sua cidade, iniciada sobre um cemitério indígena, continue sendo construída sobre os cadáveres de seus descendentes — os caboclos”.

Jornalista e professor doutor José Ribamar Bessa Freire

Bessa, que é doutor em Letras, foi professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e atualmente é professor da Universidade do Rio de Janeiro (UNl-Rio) e também da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), onde coordena o Programa de Estudos dos Povos Indígenas, cita os cálculos da existência de pelo menos 6,7 milhões de índios na chamada pan-amazônia antes da chegada dos europeus, estimados por demógrafos da Escola de Berkeley.

Essa escola usava métodos refinados para calcular a densidade demográfica de cada bioma, a partir do uso crítico de dados de documentos históricos cruzados com estudos de arqueologia e antropologia e cálculos da taxa de população originada por guerras, escravidão e epidemias de doenças infecciosas. “Foi com essa metodologia que um deles, William Denevan, calculou para a Pan-amazônia a população original de 6.7 milhões de índios”, afirma o professor.

Para corroborar com esse cálculo, Bessa cita o padre João Daniel, um jesuíta que morreu na prisão em Lisboa, depois de viver mais de 15 anos na Amazônia. O padre calculou em mais de 2 milhões os índios exterminados só na região do rio Negro, no período de pouco mais de um século. Ele testemunhou que os índios “morriam como moscas”, disse o professor.

Durante mais de um século em que esteve oficialmente vigente a escravidão indígena na Amazônia, os portugueses usaram a região do rio Negro como um celeiro, onde vinham se abastecer de índios para substituir aqueles que morriam devido ao sistema de trabalho colonial que não se preocupava com a reprodução de sua força de trabalho.

Bessa destaca que o forte de São José do Rio Negro exerceu um papel fundamental no reordenamento do espaço amazônico, por ter significado o início de uma forma de ocupação que negava as formas anteriores e só podia efetivar-se com a destruição daquilo que existia antes.

“As habitações e aldeias existentes na área foram invadidas, saqueadas queimadas e seus habitantes, aprisionados, foram escravizados na plantação de tabaco, algodão e cana-de-açúcar das proximidades de Belém ou então conduzidos para as chamadas ‘aldeias de repartição’, ou para as atividades de coleta das chamadas ‘drogas do sertão’, explicou.

Os índios Manáos resistiram à invasão dos territórios armados, mas foram completamente varridos do mapa, segundo o pesquisador. A destruição, prevista num mito da tribo, atingiu o líder Ajuricaba, que após ter sido aprisionado, morreu afogado no Rio Negro, em circunstâncias não esclarecidas, pois os colonizadores falam em suicídio.

Os índios Tarumã teriam caído inicialmente na conversa dos missionários, aceitando abandonar pacificamente as suas casas para viverem no aldeamento português do Lugar da Barra, construído ao redor da fortaleza. Logo depois, Pedro da Costa Favela, para escravizá-los, realizou expedição punitiva, dizimando-os, relata Bessa.

Nova cidade

Bessa foi convidado pelo Ministério Público do Estado para visitar um cemitério indígena descoberto durante as obras do conjunto Nova Cidade. Ao encontrar os donos da construtora, foi recebido com reserva pelas críticas que vinha fazendo nas suas crônicas. Mas não se intimidou e esclareceu aos desavisados empresários que as urnas eram úteis para dizer como o lugar era ocupado, mas com após a destruição ficava difícil estudar para conhecer esse passado, que poderia trazer inúmeras informações interessantes.

Ao ouvir de um dos donos da construtora que nunca tinha ouvido falar de cemitério indígena, mesmo sendo uma pessoa com curso superior, Bessa então teve que lhe dar razão. “É preciso conhecer o nosso passado indígena”, afirmou, para sugerir naquela área a construção de um museu a céu aberto, como existe em Lima, no Peru, com toda infraestrutura para atrair turistas para Manaus. Até o momento, nada aconteceu e a área está abandonada e sendo saqueada.

Ele lamenta a impossibilidade de saber, hoje, como os índios se apropriaram daquele espaço, como o habitaram e hierarquizaram, como estavam organizadas as suas aldeias e qual era a percepção que tinham do seu território, isso porque não estamos fora do quadro complexo da rede de relações sociais aqui existentes.

Para o professor, o aniversário de 351 anos de Manaus é um bom momento para desenterrar essa memória, isso porque “os índios estão encravados no nosso passado, mas integram o Brasil moderno, de hoje, e não é possível a gente imaginar o Brasil no futuro sem a riqueza das culturas indígenas”, finaliza.

Para saber mais: https://edoc.ufam.edu.br/bitstream/123456789/2170/1/Anexo%20A%20-%201987%20Bar%C3%A9s%20Mana%C3%B3s%20Tarum%C3%A3s%20%28JRBessaFreire%29.pdf

http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/pdf/cinco_ideias_equivocadas_jose_ribamar.pdf

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