Chacina no Rio ultrapassa 100 mortos e levanta dúvidas sobre legalidade e transparência da operação
Ação policial nas comunidades da Penha e do Alemão é a mais letal da história do Rio; governo ainda não esclareceu número exato de vítimas, mandados cumpridos e responsabilidade das forças de segurança
A megaoperação policial nas comunidades da Penha e do Alemão, na zona norte do Rio de Janeiro, tornou-se a mais letal da história do estado. Coordenada pelo governador Cláudio Castro (PL) e batizada de “Operação Contenção”, a ação já soma mais de 100 mortos, segundo a Defensoria Pública do Estado.
O caso vem sendo acompanhado pela Agência Pública, que desde terça-feira (28) reúne dados, relatos e questionamentos sobre a legalidade e a condução da operação, marcada por falta de transparência e indícios de violações de direitos humanos.
Número de mortos e inconsistências oficiais
Até a tarde de terça-feira (28), o governo do Rio informava 64 mortes, entre elas quatro policiais. No entanto, moradores do Complexo da Penha levaram dezenas de corpos até a Praça São Lucas, uma das principais vias da região, ampliando o número de vítimas para mais de 100, conforme confirmou a Defensoria Pública nesta quarta (29).
Ainda não há informações precisas sobre a identidade das vítimas, nem sobre onde estão os corpos contabilizados inicialmente pelo governo. Uma perícia oficial será realizada para determinar a relação entre as mortes e a operação, mas até o momento não há esclarecimento do governo sobre os procedimentos adotados.
Segundo dados apurados pela Agência Pública, familiares e testemunhas denunciam que as equipes de perícia chegaram com atraso e que muitos corpos foram retirados por moradores, sem o devido acompanhamento técnico.
Objetivos da operação e falta de transparência
O governo estadual afirmou que a operação visava cumprir cerca de cem mandados de prisão em áreas dominadas por facções criminosas.
Contudo, o governador Cláudio Castro declarou que a ação foi “um sucesso”, sem detalhar quantos mandados foram cumpridos ou quantos mortos estavam entre os investigados.
“Não vamos ficar chorando, ajudaram ou não ajudaram. Não dá para contar com apoio, a gente fez a nossa operação e foi um sucesso”, afirmou o governador em coletiva.
Organizações de direitos humanos apontam que a ausência de informações oficiais e a falta de transparência sobre os resultados da operação violam os protocolos determinados pelo Supremo Tribunal Federal (STF), especialmente a ADPF das Favelas, que regulamenta a atuação policial em comunidades.
Feridos e relatos de violência
Moradores relataram tiros indiscriminados, invasões de casas e execuções sumárias. Há registros de civis atingidos por disparos, incluindo casos de pessoas confundidas com criminosos por policiais.
O governo ainda não informou quantos ficaram feridos, como esses casos serão investigados ou se haverá perícias independentes.
A Defensoria Pública e o Ministério Público do Estado solicitaram investigação imediata das mortes e proteção para testemunhas.
Legalidade da operação e descumprimento de normas
A Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, conhecida como “ADPF das Favelas”, estabelece que operações policiais no Rio devem seguir critérios rigorosos, como: preservação dos locais de crime; autópsia obrigatória de todas as mortes por ação policial; gravação integral das operações; acompanhamento pelas corregedorias da Polícia Militar e Civil; conclusão das investigações em até 60 dias.
Apesar disso, moradores e organizações civis relatam que nenhuma dessas medidas foi observada.
O próprio governador Cláudio Castro já classificou a ADPF como “maldita”, em crítica às limitações impostas pelo STF.
A operação mais letal da história do Rio
Com mais de 100 mortos confirmados, a Operação Contenção supera as chacinas do Jacarezinho (2021), que deixou 28 mortos, e de Vila Cruzeiro (2022), com 25 vítimas.
Especialistas classificam o episódio como uma das maiores tragédias urbanas da história do Brasil e alertam para o risco de banalização da letalidade policial nas favelas.
A Defensoria Pública, o Ministério Público e o Conselho Nacional de Direitos Humanos anunciaram missões de acompanhamento e investigações independentes para apurar responsabilidades.
Crise humanitária e ausência de política pública
A tragédia reacendeu o debate sobre a segurança pública no Rio de Janeiro, historicamente marcada pela violência policial e pela ausência de políticas sociais estruturantes.
Entidades de direitos humanos afirmam que o modelo de confronto adotado pelo governo estadual reproduz o ciclo de mortes e violações nas periferias.
“Não há nada que justifique a morte de mais de cem pessoas em uma ação que o próprio governo chama de sucesso”, afirmou, em nota, o coletivo Rede de Observatórios da Segurança.
📎 As informações desta reportagem foram apuradas com base em dados e levantamentos da Agência Pública, que acompanha o caso em tempo real e mantém atualizações sobre as vítimas, o contexto da operação e as respostas do governo estadual.


