DESTAQUEMEIO AMBIENTE

Organizações da bacia do Rio Negro discutem consequências da desestruturação da Funai na região

Precarização de recursos humanos e orçamentários do órgão colocam em risco os aproximadamente 40 mil indígenas de 45 povos diferentes que vivem na região, segundo dados do Instituto Socioambiental

Povos indígenas da região da bacia do Rio Negro no Amazonas vêm enfrentando situação de calamidade e completo abandono por conta da desestruturação da Fundação Nacional do Índio (Funai) agravada nos últimos anos. A região abrange aproximadamente 40 mil indígenas de 45 povos diferentes, segundo dados do Instituto Socioambiental.
De acordo com o presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), Marivelton Rodrigues Barroso Baré, a Funai está se tornando um cartório, existe apenas para a emissão de Rani (Registro Administrativo de Nascimento de Indígena).

“Não tem bote, motor, carro, gente, não tem nada. Desde 2009 há uma desestruturação do órgão que, a cada período, só tem piorado. A Coordenação Regional Rio Negro (responsável pelas CTLs), que já chegou a ter 45 servidores, hoje está abandonada”, afirma o presidente da Foirn.

Em Santa Isabel do Rio Negro, por exemplo, município localizado a 630 quilômetros de Manaus em linha reta, há um total de 13 funcionários operando nas duas Coordenações Técnicas Locais (CTL) sendo que um está com o cardo de coordenador vago desde o ano passado, conforme denúncia da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn).

No município de Barcelos, distante a mais de 399 quilômetros de Manaus, uma das CTLs foi extinta. Já em São Gabriel da Cachoeira, cidade que faz divisa com a Colômbia e Venezuela, a 862,5 quilômetros da capital amazonense, dois cargos de chefe local, entre os cinco existentes, estão desocupados, incluindo o da Frente de Proteção Etnoambiental Yanomami.

Ele aponta ainda outra situação de gravidade em relação à população Yanomami, que soma 28.858 indígenas nas comunidades nos municípios de São Gabriel, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos.

“A Frente Etnoambiental que existe fica referenciada apenas para Roraima, ou seja, os indígenas do Amazonas ficam à mercê. Eles não têm recurso nenhum. No mês passado quem bancou alimentação para manter os parentes foi a Foirn. Por mais que tenha medida judicial determinando o funcionamento das frentes, eles não respeitam, tudo segue morosamente”, completa Marivelton Baré.

As Frentes Etnoambientais (FPEs) são grupos de atividade criados no âmbito da Funai para promover a proteção, monitoramento, vigilância de índios isolados e de recente contato que habitam esse território, visando anular a atividade ilegal cometida pela população de seu entorno. Atualmente 11 FPEs estão sob a Coordenação-Geral de Índios isolados e de Recente Contato da Funai (CGIIRC).

O coordenador-geral da Associação Serviço e Cooperação com Povo Yanomami (Secoya), Silvio Cavuscens, lembrou que a coordenação da Frente Etnoambiental em São Gabriel da Cachoeira foi eliminada e nunca mais reposta. “Nunca teve atuação efetiva no Amazonas”, afirma.

A respeito do trabalho administrativo, ele pontuou situações como a dificuldade na liberação de emenda parlamentar destinada aos indígenas, que deve ser repassada via Funai. “Temos uma Emenda destinada ao povo Yanomami do Médio Rio Negro que está parada desde 2020 esperando essa liberação. De muitas formas os indígenas estão cada vez mais prejudicados e agredidos em seu direito à existência”, afirma Cavuscens.

A promotora de Justiça do Ministério Público Estadual do Amazonas (MPE/AM), Karla Cristina, pontuou que é crime o desaparelhamento de um órgão federal como a Funai, criado para atuar na defesa dos povos indígenas. A Funai é o órgão federal criado em 1967 para coordenar a política indigenista do Estado brasileiro.

Saúde precarizada
“Aqui em Barcelos, notificamos a empresa responsável pela manutenção da Casa de Apoio à Saúde Indígena (Casai) a apresentar um cronograma regular de limpeza e organização de reparos, já que não os responsáveis não tomam as medidas necessárias. O local não tem instalação hidráulica e os funcionários utilizam uma torneira para higienizar as pessoas doentes. Quando questionamos o porquê dessa situação, informaram que não é preciso arrumar porque o indígena não utiliza esse sistema. Uma situação desumana”, afirma a promotora estadual de Justiça, Karla Cristina.

A representante da Associação Indígena de Barcelos (Asiba), Irmã Idalina, também denunciou o descaso com a Saúde por parte do Distrito de Saúde Indígena (DSEI) que não tem combustível, agente de saúde, medicamentos, o que vem contribuindo para um aumento de casos de malária. “Para fazer qualquer procedimento que precise de remoção é impossível pois não tem como trazer a pessoa até Barcelos”, explica.

Em relação ao povo Yanomami, há um caos generalizado de casos de malária. “Visitamos mais de 30 aldeias e a desassistência é gritante: falta condições de trabalho, várias equipes paradas por falta de material, material estragando, é deplorável, uma grande falta de gestão. Observamos que num contexto pós pandemia, o quadro é bem grave, uma vez que boa parte dos indígenas apresenta seqüelas”, afirma o coordenador geral da Secoya, Silvio Cavuscens. Ele aponta que o Dsei responsável não tomou qualquer medida de prevenção em relação à Covid-19, colocando em risco a vida de uma população de pouco contato. Além disso, a falta de comunicação com rádios deficientes dificulta qualquer tipo de assistência a essa população.

“Há a preocupação no deslocamento de indígenas isolados no alto Marauiá e Alto Denemi pela falta de assistência e onde existem muitos casos de malária, além da presença de garimpo, principalmente do lado da Venezuela. É justamente nesse ponto onde deveria ter atuação da Frente Etnoambiental, onde tem 32% da população Yanomami no Brasil”, explicou.

O procurador da República Fernando Merloto Soave informou que aguarda a formalização das denúncias por parte das associações e organizações para tomar as medidas cabíveis. A problemática foi abordada durante segunda reunião online do Grupo de organizações indígenas e indigenistas da bacia do Rio Negro com o Ministério Público Federal, realizada no mês de agosto. A primeira, realizada no mês de junho, tratou da questão da segurança territorial. Participaram da reunião representantes do MPF, MPE/AM, Secoya, Associação Kurikama, Foirn e Asiba.

Retrocessos
O Ministério Público Federal (MPF) apontou, em nota divulgada em abril, no dia em que se celebra o Dia do Índio (19), uma série de retrocessos em relação aos direitos dos povos indígenas acumulados ao longo dos últimos três anos, período que coincide com o fim da gestão Michel Temer e o governo Bolsonaro.

No documento, a Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do MPF destaca que nenhuma terra indígena é delimitada, demarcada ou homologada no país há cerca de três anos. Os procuradores alegam que a Fundação Nacional do Índio (Funai) tem suas atribuições enfraquecidas desde o início do governo Bolsonaro.

São inúmeros os atos implementados pelo poder Executivo e listados pelo MPF que teriam acarretado na “redução da força de trabalho” e na “desvirtuação da missão institucional” da Funai. O documento cita, por exemplo, a Instrução Normativa 9 da Funai, editada em abril de 2020, que determinou a exclusão de todas as terras indígenas não regularizadas da base de dados do Sistema de Gestão Fundiária (Sigef).

Com isso, todos os territórios indígenas que não estavam no último estágio de reconhecimento estatal teriam se tornado “invisíveis”. “Na prática, a instrução permite o reconhecimento de propriedades privadas em áreas reivindicadas por indígenas ou em processo de demarcação”, alega o MPF.

Outro exemplo de retrocesso em relação aos direitos indígenas, segundo o MPF, foi a publicação da Resolução 4, da Funai, em janeiro deste ano. A resolução estabelecia novos critérios de heteroidentificação de povos e indivíduos indígenas para fins de execução de políticas públicas, mas foi suspensa pelo STF dois meses após sua publicação, à pedido do próprio MPF. Segundo o órgão, essa medida buscava “limitar o acesso a políticas públicas específicas para esses povos [indígenas], inclusive na área de saúde”.

O documento ainda relembra a instrução normativa nº 01, editada em fevereiro deste ano pela Funai e pelo Ibama. A medida estabeleceu novos procedimentos a serem adotados durante o processo de licenciamento ambiental de empreendimentos ou atividades localizadas em terras indígenas.

De acordo com o MPF, esse ato específico buscou “institucionalizar o arrendamento rural nos territórios indígenas”, o que violaria também uma cláusula da Constituição que determina a reserva de usufruto exclusivo de recursos naturais de terras indígenas aos povos indígenas. Trata-se do § 2º do artigo 231 da Constituição de 1988, que determina que “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios se destinam a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”.

*Com informações do site Congresso em Foco

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