TCE-AM abre diálogo sobre racismo estrutural e desafia instituições a mudarem por dentro
Roda de conversa sobre perspectiva racial reuniu mais de 120 pessoas e lançou um chamado direto à reflexão sobre representatividade, educação e mercado de trabalho às vésperas do Dia da Consciência Negra
Às vésperas do Dia da Consciência Negra, o Tribunal de Contas do Amazonas (TCE-AM) promoveu uma pausa necessária — e profundamente simbólica — na rotina institucional para olhar para dentro de suas estruturas e, ao mesmo tempo, provocar a sociedade a fazer o mesmo. Por meio da Comissão de Assessoramento Permanente Antirracista, em parceria com a Escola de Contas Públicas (ECP), o órgão realizou a roda de conversa “Perspectiva racial nas esferas pública e privada: construindo instituições antirracistas”, reunindo mais de 120 participantes entre gestores, professores, universitários e servidores públicos.
Mais do que um encontro formal, o momento se firmou como um espaço de escuta e confronto de realidades historicamente silenciadas no Brasil — e na Amazônia. Logo na abertura, os mediadores André Mendonça, professor e diretor do Centro de Ciências do Ambiente da UFAM, e Rosenilda Freitas, auditora de controle externo do TCE-AM e integrante da Comissão Antirracista, lançaram perguntas que ecoaram pela plateia:
“Quantos negros estão nos espaços que você ocupa? Quantos professores negros você teve? Quantas pessoas negras você vê nos ambientes acadêmicos e decisórios?”
O silêncio que se seguiu a essas questões talvez tenha sido a resposta mais forte do dia.
O peso histórico da exclusão
Convidada a fazer a primeira exposição, a pesquisadora Venandra Murici, mestranda em Direito pela Universidade Católica do Salvador (UCSal) e estudiosa das relações entre justiça racial e acesso à pós-graduação, apresentou um panorama histórico contundente sobre as desigualdades educacionais no Brasil.
Baseada em sua pesquisa sobre os impactos do racismo institucional no acesso ao ensino superior, ela defendeu que o país carrega um legado profundo de exclusão, iniciado ainda no período da escravidão, quando a alfabetização de pessoas negras era vista como ameaça ao sistema escravocrata.
“Negar o acesso à educação sempre foi uma estratégia de controle. O racismo no Brasil se estruturou também pelo impedimento do conhecimento”, destacou.
Ao abordar as conquistas jurídicas das últimas décadas, como o Estatuto da Igualdade Racial e a Lei de Cotas, Venandra reforçou que as ações afirmativas não são privilégios, mas instrumentos de reparação histórica.
“A lei de cotas não retira direitos. Ela amplia oportunidades e corrige uma desigualdade que atravessa séculos. Não se pode falar em igualdade sem reconhecer o ponto de partida de cada grupo social”, afirmou.
Racismo e o mundo do trabalho
Na sequência, o professor e juiz do trabalho Igo Zany, mestre pela UFAM e doutorando em Direito pela UFMG, aprofundou o debate ao tratar das diversas manifestações do racismo nas relações trabalhistas — muitas vezes banalizadas, mas profundamente violentas.
Ele chamou atenção para o fato de o Brasil ainda ser reconhecido internacionalmente pela persistência de práticas discriminatórias contra pessoas negras e alertou para a permanência de um imaginário social que ainda enxerga corpos negros a partir de um “perfil de escravizado”.
Igo abordou desde ofensas diretas até formas mais sutis e perigosas de violência, como microagressões, silenciamento, divisão racial de funções e práticas que se aproximam do assédio moral.
“Quando a desigualdade se torna paisagem e deixa de nos incomodar, isso é sinal de que o racismo venceu uma etapa perigosa: a da naturalização”, alertou.
Ao final de sua fala, ele parabenizou o TCE-AM pela iniciativa e reforçou que reconhecer o racismo institucional é o primeiro passo para desmontá-lo.
Quando o debate ultrapassa as paredes
Ao longo de toda a roda de conversa, dezenas de perguntas e depoimentos do público tornaram evidente que o tema toca experiências pessoais, profissionais e acadêmicas de quem vive no Amazonas. A escuta ativa, o envolvimento dos participantes e a intensidade das reflexões confirmaram que há uma demanda real por mais espaços como esse — onde o diálogo não é apenas permitido, mas incentivado.
Mais do que um evento pontual, a iniciativa do Tribunal de Contas do Amazonas fortalece a mensagem de que instituições públicas também precisam rever suas estruturas, seus símbolos e suas práticas internas se desejam construir uma sociedade mais justa, plural e representativa.
Ao fomentar essa conversa às vésperas do Dia da Consciência Negra, o TCE-AM não apenas marcou uma data — assumiu uma responsabilidade histórica: a de contribuir ativamente para a construção de instituições verdadeiramente antirracistas.
Foto: Joel Arthus – DICOM/TCE-AM


