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Amazonas passa a permitir porte de armas de choque por mulheres após sanção de lei inédita

Medida inédita no país exige curso, laudo psicológico; especialistas apontam lacunas de fiscalização e o risco de transferir às vítimas a responsabilidade pela própria proteção

Em um gesto sem precedentes no país, o governador Wilson Lima sancionou a Lei nº 848/2024, de autoria do deputado estadual Felipe Souza (União Brasil), que autoriza mulheres maiores de 18 anos, residentes no Amazonas, a adquirirem e portarem armas de incapacitação neuromuscular — conhecidas como armas de choque — como instrumento de autodefesa pessoal. A proposta, aprovada pela Assembleia Legislativa do Amazonas (Aleam), foi publicada no Diário Oficial do Estado no fim de agosto e já provoca intensas discussões.

A lei estabelece que cada mulher poderá registrar apenas uma arma do tipo, com potência máxima de 10 joules, vedando o uso de dispositivos que disparem dardos energizados. A aquisição só poderá ocorrer em lojas especializadas, mediante apresentação de documento de identidade, comprovante de residência e certidão negativa de antecedentes criminais.

Capacitação, avaliação psicológica e controle do porte

Entre as exigências previstas está a realização de um curso de uso seguro do equipamento, ministrado por instrutores credenciados pelos órgãos de segurança pública do Estado. As interessadas também deverão apresentar laudo psicológico atestando aptidão para o manuseio da arma.

A lei determina que a posse e o porte sejam registrados junto aos órgãos de segurança estaduais, com fiscalização periódica — pontos que ainda dependem de regulamentação detalhada do Executivo estadual para que possam ser aplicados.

Entre o direito de se defender e o risco de banalizar a violência

Especialistas em direito e segurança pública apontam lacunas legais e riscos na aplicação da norma. Como a regulamentação do porte de armas — mesmo não letais — é, em regra, competência da União, a legislação estadual pode enfrentar questionamentos constitucionais. O texto tenta contornar essa barreira ao definir que as armas de choque autorizadas não estejam na lista de Produtos Controlados pelo Exército (PCE).

Há também preocupação com acidentes domésticos e com o uso indevido do equipamento em conflitos interpessoais, especialmente em ambientes já marcados por violência de gênero.

“Não basta entregar o equipamento: é preciso garantir preparo psicológico, fiscalização constante e punições claras para uso abusivo”, avalia a advogada criminalista Renata Vasconcelos.

Sororidade não é armada: segurança é um dever coletivo

Defensores da lei afirmam que ela pode representar uma ferramenta adicional de proteção para mulheres em um estado com altos índices de feminicídio. Por outro lado, organizações de defesa dos direitos das mulheres alertam que a medida não ataca as causas estruturais da violência — e pode reforçar a ideia de que a mulher deve, sozinha, garantir sua própria segurança.

Em um contexto de violência sistêmica, marcada por desigualdade de gênero e ausência de políticas de prevenção eficazes, a autodefesa armada não substitui o papel do Estado na proteção da vida das mulheres. Garantir segurança passa por fortalecer a rede de proteção, responsabilizar agressores, ampliar políticas de educação e igualdade e investir na autonomia e dignidade das mulheres — e não em armá-las.

Enquanto a regulamentação da nova lei não é publicada, o Amazonas se torna o primeiro estado brasileiro a autorizar o porte de armas de choque por mulheres, abrindo um debate sensível sobre os limites da autodefesa, os direitos das mulheres e a urgência de políticas que protejam sem colocar sobre elas o peso da própria salvação.

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