BR-319 e o desafio de asfaltar sem destruir
Editorial do Valor Amazônico defende que integração territorial e preservação ambiental não sejam caminhos opostos na Amazônia
A BR-319 não é apenas uma rodovia de 885 quilômetros que liga Manaus a Porto Velho. Ela representa uma escolha de país: a integração física da Amazônia ao restante do território nacional ou a manutenção de uma das últimas fronteiras verdes do planeta. Defender a pavimentação ou a paralisação da obra não pode ser, no entanto, um exercício de extremos. O verdadeiro debate precisa reconhecer que desenvolvimento e preservação só são possíveis quando caminham juntos, com regras claras, fiscalização forte e planejamento de longo prazo.
O “trecho do meio” — entre os quilômetros 250 e 656 — é o símbolo do abandono e da negligência: uma via de terra batida, intransitável durante a estação chuvosa, marcada por lama, erosão e colapso de pontes como as do Curuçá e Autaz Mirim, que em 2022 custaram vidas e isolaram comunidades. Mesmo nos trechos pavimentados, a logística é limitada e, segundo a própria Suframa, não se justifica economicamente para cargas da Zona Franca frente ao transporte fluvial.
Mas a maior ameaça não está no barro: está nas bordas da floresta. Entre 2016 e 2024, foram perdidos 266 mil hectares de cobertura vegetal nas áreas próximas à rodovia. Mais de 4 mil quilômetros de ramais ilegais surgiram nos últimos cinco anos, abrindo caminho para grilagem e avanço da fronteira agrícola. É o efeito “espinha de peixe”, que não só devasta a floresta como pode comprometer o ciclo de chuvas de toda a região.
O licenciamento ambiental, por sua vez, está no epicentro do impasse. As reservas de desenvolvimento sustentável Igapó-Açu e Matupiri, criadas para amortecer o impacto da pavimentação, são insuficientes para conter os danos se a obra avançar sem salvaguardas. A suspensão da licença prévia em 2022 e o acordo recente para uma Avaliação Ambiental Estratégica restrita a um raio de 50 quilômetros mostram que a discussão continua mais política que técnica — agravada pelo veto presidencial a trechos da nova lei de licenciamento que poderiam flexibilizar as exigências.
No plano político, o debate se contamina por disputas narrativas. De um lado, o governo federal e setores ambientais, como a ministra Marina Silva, apontando dados de desmatamento e riscos climáticos. De outro, lideranças como o senador Omar Aziz e parlamentares estaduais, que defendem a obra como instrumento de integração e contestam os números apresentados.
O Valor Amazônico entende que o Amazonas não pode ser condenado ao isolamento nem sacrificado ao avanço predatório. Pavimentar a BR-319 pode significar oportunidade de acesso a serviços, redução do custo de vida e integração de comunidades, desde que acompanhado por uma governança ambiental robusta, fiscalização contínua e políticas públicas que impeçam a ocupação desordenada.
Sem essas condições, o asfalto será apenas a estrada para a perda irreversível da floresta. Com elas, pode se tornar um corredor de desenvolvimento sustentável e um exemplo de que a Amazônia não precisa escolher entre progresso e preservação. O desafio está lançado — e a responsabilidade é de todos.
Fotos: EBC