MPF vai à Justiça para obrigar União e Funai a analisarem demanda territorial dos indígenas Kaixana no Amazonas
Comunidade Jerusalém do Urutuba, no município de Tonantins (AM), tem sido alvo de invasões por não indígenas desde 2013
O Ministério Público Federal (MPF) apresentou à Justiça ação civil pública para que a União e a Fundação Nacional do Índio (Funai) tomem as medidas administrativas necessárias para realizar a identificação e a delimitação, se procedente o pleito, da terra indígena Jerusalém do Urutuba, habitada pelo povo Kaixana. Localizada no município de Tonantins (a 865 quilômetros de Manaus), a terra indígena tem sido alvo de invasões de pessoas não indígenas, inclusive de agente político do município, que, segundo denúncia dos indígenas, solta seu rebanho bovino em áreas próximas à comunidade, que eram utilizadas pelos Kaixana para agricultura.
Na ação, o MPF requer que a Funai seja obrigada a publicar portaria de constituição de um Grupo de Trabalho (GT) para elaborar Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação referente aos indígenas em questão e apresente o plano de trabalho, bem como documentos que comprovem a realização das etapas do plano. O MPF requer ainda que a Funai elabore, finalize e avalie o relatório, que deverá ser custeado pela União, além de indeferir todos os requerimentos de intervenção de terceiros.
O MPF aponta que, conforme apurado por um período de, pelo menos, sete anos, mesmo diante da reivindicação fundiária dos Kaixanas, do fato de a área de Jerusalém do Urutuba ter registros na Funai desde 2006, bem como a autarquia ter conhecimento dos constantes conflitos entre indígenas e não indígenas na área, o processo administrativo de reivindicação permaneceu na estaca zero, relegando o povo a uma situação de extrema vulnerabilidade territorial e ambiental. “A omissão estatal vem ocasionando diversos danos ao povo Kaixana e provocando insegurança jurídica generalizada na região”, destaca o MPF em trecho da ação.
Histórico – Em 2013, os indígenas entregaram ao MPF documentos solicitando providências em relação ao conflito, os quais indicam que há registro, pelo menos desde 2006, das reivindicações fundiárias do povo indígena perante a Funai. Na época, a fundação informou que os documentos tinham sido enviados para a Coordenação Geral de Identificação e Delimitação (CGID), em Brasília, para que fossem tomadas as providências cabíveis.
No ano seguinte, a Diretoria de Proteção Territorial (DPT) informou que a reivindicação fundiária do povo Kaixana encontrava-se em qualificação, etapa em que a Funai fica disponível para receber documentos e informações preliminares de natureza etno-histórica, ambiental, sociológica, fundiária e cartográfica, que serão analisados e sistematizados pelo setor competente com o objetivo de motivar, oportunamente, a constituição de Grupo Técnico multidisciplinar, responsável por realizar os estudos necessários à demarcação das áreas com base na legislação vigente.
A priorização dos procedimentos de identificação e delimitação é pautada por alguns critérios, dentre eles, situação de vulnerabilidade social do grupo indígena. Segundo o MPF, embora a Funai já tivesse conhecimento da existência do conflito entre indígenas e não indígenas em Jerusalém do Urutuba, a área não tinha nenhuma priorização para realização de trabalhos e estudos fundiários específicos até 2014.
Nos anos seguintes, o MPF e a Funai apuraram denúncias dos indígenas contra um agente político do município de Tonantins. Após diligências realizadas no local, a Funai constatou que muitos bois e búfalos pastavam dentro das áreas pertencentes à comunidade dos Kaixana. Segundo depoimentos colhidos na ocasião, os indígenas estavam sendo impedidos de plantar e, quando conseguiam, também eram impedidos de realizar a colheita de suas roças. Por conta desses impedimentos e devido à comunidade depender tradicionalmente da produção familiar agrícola de subsistência, a comunidade relatou períodos de escassez de alimentos.
Já em 2019, o MPF solicitou novamente que a Funai prestasse informações atualizadas sobre a área indígena e as invasões, tendo em vista que o inquérito instaurado veiculava informações de, pelo menos, dois anos atrás. Em resposta, a autarquia informou que não seria possível responder a requisição em tempo razoável, alegando que os gastos para o deslocamento de servidores não poderiam ser pagos, pois os recursos da fundação não estavam disponíveis devido ao fato de 90% do orçamento nacional estar contingenciado e ainda sem previsão de descontingenciamento para execução de atividades de campo.
Direito constitucional e garantias internacionais – A Constituição garante aos povos indígenas direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. O direito territorial desses povos é um direito constitucional fundamental, cujo pressuposto sociocultural e histórico é que as terras sejam “tradicionalmente ocupadas”, algo que não diz respeito a um lastro temporal, mas à forma com que é ocupada, como uso para suas atividades produtivas, que dentre outros, se encaixa no caso dos Kaixana em Jerusalém de Urutuba.
Internacionalmente, o Brasil reconheceu jurisprudência firmada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) sobre o “direito à propriedade comunal dos povos indígenas, superando a visão convencional civilista de propriedade individual, para incorporar o caráter coletivo e tradicional do uso de território e seus recursos naturais pelos povos indígenas”. A interpretação da Corte IDH deve ser necessariamente considerada pelos juízes nacionais, conferindo-se grande valor aos precedentes e efeito expansivo às decisões do órgão, postura que contribui para a unificação da interpretação dos direitos da Convenção Americana de Direitos Humanos (Cadh), como já decidiu o próprio órgão.
A jurisprudência da Corte IDH reforça a obrigatoriedade do Estado brasileiro em identificar, reconhecer, delimitar, demarcar e homologar as terras indígenas, inclusive sob pena de responsabilização internacional no caso de omissão. Segundo o MPF, no caso dos Kaixana de Jerusalém do Urutuba, a omissão dos órgãos estatais em dar início ao processo administrativo de demarcação viola o direito constitucional à terra, contraria a Cadh e a jurisprudência da Corte IDH, sujeitando o Estado brasileiro à responsabilização internacional, e contribui para o agravamento e tensionamento dos conflitos na região.
Em 2018, a corte condenou o Estado brasileiro pela primeira vez pela violação do direito à propriedade comunal de um povo indígena. Na ocasião, a Corte IDH determinou que o Estado deveria garantir o direito de propriedade coletiva do povo indígena Xucuru (PE) sobre seu território, de modo que não sofram nenhuma invasão, interferência ou dano, que possam depreciar a existência, o valor, o uso ou o gozo de seu território. A corte considerou que o Estado brasileiro foi omisso em tomar providências para tornar plenamente efetivo os direitos territoriais do povo indígena Xucuru de Ororubá.