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Série de ficção retrata questões do universo feminino na Amazônia urbana contemporânea

“Calendário de Letícia”, projeto contemplado pela Lei Aldir Blanc, quebra estereótipo da floresta exótica para retratar vivências pessoais e profissionais de trintões em ‘tempos líquidos’

O cenário contemporâneo de uma Manaus urbana e conectada é o pano de fundo para esta série que narra as desventuras compartilhadas por um grupo de amigos de trinta de tantos anos. É protagonizada por Letícia, uma mulher solteira com conflitos de relacionamento, uma covarde do amor que performa uma vida perfeita no universo virtual, mas no real usa mandingas amazônicas e a tecnologia para tentar passar do quinto encontro.

As complexidades de vivências universais como a de relacionar-se em tempos líquidos, por exemplo, em um cenário que permite também o contato com a magnitude da natureza, com a influência do folclore e dos conhecimentos de populações tradicionais são os ingredientes da série de ficção “Calendário de Letícia”, uma comédia dramática ambientada na Amazônia.

O projeto foi contemplado com o Prêmio Manaus de Conexões Culturais 2020, da Fundação Municipal de Cultura, Turismo e Eventos (Manauscult), com recursos emergenciais da Lei Aldir Blanc (Lei nº 14.017/2020) para o desenvolvimento da bíblia de venda e dos roteiros da primeira temporada da série.

Lídia Ferreira é jornalista, especialista em Cinema (Unespar) e Mestranda em Cinema e Artes do Vídeo

Em 2019, “Calendário de Letícia” participou do laboratório de projetos do Festival Visões Periféricas no Rio de Janeiro-RJ, onde recebeu consultorias com Victor Lopes e Simone Melamed e participou de rodadas de negócios com a Fox/Disney, Mais Globosat, e GNT.

Em 2020, foi selecionado para o Núcleo de Projetos Audiovisuais (NPA), onde recebeu consultorias online com Daniel Tavares (roteirista e professor na EICTV- Cuba), Jessica Candal (roteirista premiada no festival de Gramado por “Ferrugem”) e Jaqueline Souza (Tertúlia Narrativa – roteirista da série “Boca a Boca” da Netflix).

Lugar de fala

De acordo com a roteirista da série, Lídia Ferreira, que também é uma das idealizadoras do projeto, a ideia original da série surgiu em uma aula de roteiro dentro do curso de especialização, quando escreveu sobre uma mulher que não passava do quinto encontro por conta do uso de aplicativos e da facilidade do descarte que se tornou os relacionamentos afetivos na era digital.

“Eu queria falar de nós, mulheres, especialmente porque observava o tema recorrente nas minhas rodas de conversa de amigos e na minha própria vida, afinal, nós dos 30 e tantos anos ficamos na safra do meio (analógicos e digitais) e estamos tendo que nos adaptar na marra a esse tipo de relação mediada”, explica.

O incentivo para seguir em frente veio da professora do curso de Especialização em Cinema da Unespar, Ana Johann, roteirista e diretora premiada pelo longa-metragem “Um Filme Para Dirceu”, no Festival de Brasília, um dos mais prestigiados do país; e do cineasta Luiz Carlos Lacerda conhecido pelos longas-metragens “Mãos Vazias” (1971), uma adaptação do romance homônimo de Lúcio Cardoso que aborda a questão da mulher na sociedade brasileira, e “Leila Diniz” (1987), versão para o cinema da história da grande atriz Leila Diniz que teve como título o nome de ela, interpretada por Louise Cardoso.

Durante o curso de especialização, Lídia e Anne Lise criaram a primeira versão do argumento e, dali em diante, se associaram para desenvolver a série. “Discutir as ideias durante o processo de escrita era uma tarefa constante nas aulas. Da ideia original, desdobramos o cenário amazônico e criamos novos personagens, demos profundidade à temática dos relacionamentos líquidos com leveza e humor. Debochar e, ao mesmo tempo, rir ao falar desse entre-lugar que nós, mulheres, vivemos”, afirma Anne Lise Ale, também criadora e roteirista, natural de Mato Grosso do Sul e radicada no Paraná.

Em 2020, ao longo de oito meses, elas trabalharam em um novo tratamento do argumento da obra dentro de um núcleo de projetos de séries e longas-metragens (Núcleo de Projetos Audiovisuais – NPA), na companhia de roteiristas iniciantes e experientes.

“Eu sempre falava muito de Manaus, das histórias da cidade e de como eu ficava incomodada quando as pessoas me diziam: ‘Você nem parece do Amazonas, eu imaginava outra coisa de lá’. Como assim? Ainda pensam que a gente é uma cidade no meio mato? Como assim ainda me perguntam se temos wifi? Foi então que fomos percebendo que era uma ótima oportunidade de mostrar uma Amazônia da atualidade a partir do seu lugar de fala. No meu caso, filha de pais que se conheceram no Distrito Industrial, que já ficou muito pendurada em porta de ônibus para chegar na Ufam, que teve acesso a eletroeletrônicos de ponta na infância, mas que também tomou muita garrafada e andiroba na garganta para curar doença a vida toda. A gente de Manaus é assim, urbano e florestal, tudo junto e misturado”, explica Lídia Ferreira.

A inquietação virou a pesquisa de mestrado sobre o imaginário amazônico nos filmes de ficção brasileira, dentro no curso de Cinema e Artes do Vídeo, da Universidade do Estado do Paraná (CINEAV-Unespar), que tem orientação da professora Beatriz Vasconcelos e co-orientação do professor Renan Albuquerque, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). “No estudo, eu pesquiso as imagens e o imaginário em filmes sobre a região dos anos 60 até os 2000. Esse material funciona como um motor de ideias para série que tem como principal proposta apresentar um olhar para Amazônia de dentro para fora”, afirma.  

Lídia lembra que também na Amazônia as pessoas enfrentam um problema universal: a dificuldade de criar vínculos afetivos, de se relacionar diante da tecnologia e até mesmo de aproveitar a liberdade sexual. “Pasmem: pesquisas mostram que somos a geração que menos transa!”, afirma.

Após o projeto de desenvolvimento dos episódios da primeira temporada da série ser contemplado no edital, outros dois roteiristas e uma pesquisadora passaram a integrar a equipe: E. M. Z. Camargo, roteirista de Curitiba (PR), produtor da animação “Apneia” (2019), eleita melhor curta brasileiro do Festival de Gramado (RS), tendo recebido ainda prêmios no Brasil, Colômbia, Argentina e Bolívia, co-diretor da animação “Vivi Lobo e o Quarto Mágico” (2019), que recebeu 12 prêmios nacionais e internacionais e diretor do documentário “Fora da Caixa” (2017), premiado no Brasil, Argentina e Bolívia; Marcos Tupinambá, de Manaus (AM), produtor, pesquisador e roteirista, graduado em Comunicação Social pela Ufam e em Produção Audiovisual pela UEA, com passagem pela Academia Internacional de Cinema (AIC-SP) onde cursou Produção Cinematográfica, e pós-graduação em Artes Visuais pelo SENAC.  Atuou em produções como Flyers – Over Amazonia (NGF Filmproduktion), River Monsters (Discovery Channel), Le Brésil par la Côte (Artè) e outras. E Steffanie Schmidt, jornalista radicada em Manaus há 13 anos, com experiência em impresso e assessoria na área de Cultura.

Criadoras da série

Lídia Ferreira é jornalista, especialista em Cinema (Unespar) e Mestranda em Cinema e Artes do Vídeo (PPGCINEAV- Unespar). Após 12 anos dedicada ao jornalismo cultural em veículos impressos de Manaus (AM), está em fase de transição de carreira para área de audiovisual. Integrou a equipe do curta universitário “AURORA” como continuísta, é assessora do Festival Breves Cenas há oito edições. É a idealizadora, criadora e roteirista da série Calendário de Letícia.

Anne Lise Ale é fundadora da produtora Julieta Audiovisual. Especialista e Mestranda em Cinema e Artes do Vídeo (Unespar). Produtora, roteirista e diretora. Dedica-se à elaboração, desenvolvimento e produção de projetos audiovisuais há nove anos. Produziu o curta-metragem “Vivi Lobo e o Quarto Mágico” (2019), animação vencedora de 12 prêmios nacionais e internacionais, exibido em mais de 13 países. Calendário de Letícia é sua primeira empreitada como criadora de série.

Fotos: Dayana Souza / Blog Seguindo Viagem/Divulgação

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